terça-feira, 18 de julho de 2017

Reportagem 25

Foi finalmente anunciada a publicação numa data ainda a determinar dos resultados definitivos da aturada investigação em torno da pergunta o que é o homem, investigação que durou já muitos séculos,
e para a qual se tornou imperativo um desfecho rápido dada a dificuldade em assegurar o necessário financiamento e o risco de ser o que ainda restava retirado por se poder considerar que uma investigação que dura muitos séculos ou produz resultados, de preferência com impacto na economia, ou deve ser abandonada como escoadouro inútil de dinheiros públicos. Uma vez que tantos séculos de investigação permitiram já a produção de diversas hipóteses plausíveis, e dado que o tempo urge, determinou-se como metodologia conducente a uma satisfatória conclusão do inquérito a realização de uma votação o mais universal possível, e recorrendo aos modernos meios de comunicação que transformam o mundo numa pequena aldeia. Por todo o planeta, físico e virtual, os defensores de cada uma das hipóteses candidatas desdobram-se em iniciativas de divulgação e promoção da sua causa, e não foram esquecidos outros meios mais tradicionais de acesso e apelo às massas, como a visita a feiras e certames, ou o costumeiro comício com arruada, acrescido de uma importação transatlântica de eficácia comprovada, a saber, o trio eléctrico. Há registo de escaramuças, sem mortos mas com alguns feridos, logo apresentados como vítimas do movimento agredido e exemplos das consequências de não terem os rivais verdadeiro espírito democrático. Espírito democrático que aqueles acusados assim de agressores reclamam também para si e de cuja falta acusam por sua vez os adversários, retratados como a mais perigosa e violenta pandilha de agitadores e provocadores. São recebidos com apupos e assobios pelos ideólogos mais espirituais aqueles de sensibilidade hipocrática, por afirmarem peremptórios que o homem é quatro coisas, sangue, fleuma, bílis negra e bílis amarela. Esta posição desagrada igualmente aos proponentes de uma origem extraterrestre para os seres humanos, que seriam descendentes degenerados de uma raça de alienígenas, extremamente inteligentes e tecnologicamente avançados, em busca de novas paragens pela vastidão do cosmos. Criaturas ou pedaços de deuses, animais evoluídos, bípedes sem penas, agentes racionais maximizadores, neuróticos que querem matar o pai, neuróticos que querem dormir com a mãe, seres responsáveis pela sua própria liberdade, máquinas calculadoras, máquinas imperfeitas, máquinas estragadas, máquinas desejantes, selvagens dotados de perfectibilidade sem garantia de que a coisa corra bem, seres emancipáveis, um caniço pensante, criaturas a meio caminho entre animais e deuses, inventores da roda e do fogo, lobos uns dos outros, entidades amorosas, loucos, tiranos, pedaços de carbono, resultado de condições materiais de produção, instâncias particulares da razão com letra grande universal, animais que riem, animais que cozinham, matéria dotada de consciência, indivíduos dotados de sentido moral, indivíduos dotados de sentido de justiça, divididos entre industriosos e preguiçosos, divididos entre pobres e ricos, dominados pelo orgulho, joguetes de muitas paixões, proprietários, seres de espécie, animais dotados de linguagem, animais dotados de um ponto de vista normativo, apreciadores estéticos, contempladores, seres activos, seres que buscam o prazer e fogem da dor, almas, pecadores, caídos, manchados por pecados originais, seres egoístas, seres egoístas medrosos, seres egoístas ambiciosos, seres egoístas astuciosos, seres de benevolência limitada, animais capazes de mentir, entes cruéis, violentos, imaginativos, sociáveis, insociáveis, seres que têm como finalidade a autonomia, conjuntos de átomos, fantoches da vontade também com letra grande, metafísicos, susceptíveis de credulidade, sicofantas, com tendência para se enganarem a si próprios, escravos do amor-próprio, capazes de usar todos os meios para atingir os seus fins, animais que contam histórias, criaturas curiosas, criaturas aventureiras, criaturas com acesso à eternidade, criaturas que assim que a morte lhes fecha os olhos deixam de ser o que são, canibais, hipócritas, sonhadores, melancólicos, megalómanos, que passam por três idades, com destino traçado pelos astros, com destino traçado pela providência mais uma vez com letra grande, produtos de fenómenos aleatórios, puros nadas, desgraçados, senhores da criação, com mentalidade de rebanho, comerciantes de metáforas mortas, marias que vão com as outras, palermas, cómicos, trágicos, tragicómicos, dignos de pena, dignos de admiração, atiradores de pedras, destinados à santidade, bons, maus, razoáveis, irracionais, autodestrutivos, míopes, crentes na ordem e no progresso, naturalmente religiosos, que querem ver o sangue correr pelas ruas, etecétera, etecétera, etecétera, tantas são as definições a concurso que é de recear tornar-se o que se esperava ser um processo rápido num pântano babélico de onde desesperaremos extrair-nos.

2 comentários:

  1. Lido com os meus olhos de hoje é o melhor artigo que lhe li neste DdD.

    PS: Acabei de aprender que, afinal, os "bufos" são "sicofantas", termo que vai para a minha pasta de "Insultos Finos".

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  2. Obrigada! Sicofanta também serve para patife em geral. Aprendi com os ingleses. Não, não estou a insultá-los refinadamente. Pelo contrário.

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