sexta-feira, 23 de junho de 2017

Call for papers 1




1.      Não fosse o mundo aquilo que é e não chamaríamos ninguém. Para nada e para lado nenhum.
O mundo tal como é permite que se chame alguém e que se chame para algum lado, mas e se não fosse assim, se não tivesse ondes e quandos, e, pior, se não tivesse assuntos. Pois quando se chama chama-se para alguma coisa e fiquemo-nos pela palavra assuntos para isso. Isso para que se chama. Esqueçamos o espaço e o tempo de que já cansa falar. Fiquemo-nos só pelos assuntos, e já não ficaremos mal instalados. Pelo menos, não ficaremos desequilibrados, porque assuntos há muitos e nunca se acumulariam esguios como um filete esguio de lâmpada. Ficaremos confortáveis, prometo. Esquecer, ficar por, há que começar por algum lado o austero processo com que, contrariando o conforto, atravessamos a massa sem fim à vista dos assuntos. Essa massa temos que atravessá-la. Se ela fosse uma montanha de papéis escrupulosamente arrumados, séculos e séculos de escrivães e arquivistas desfeitos em pó no meio de páginas e páginas de narrações, exposições notícias, actas relatando aquilo que o mundo é, teríamos que atirá-los pelos ares, teríamos que ser impiedosos, teríamos que ser bárbaros, teríamos que afastar com braços musculados as figuras pretas plangitivas que se nos agarrariam às roupas tentando travar o ultraje à memória dos séculos e séculos de escrivães e arquivistas, aqueles parentes destes. Correríamos o risco de encontrar um destes ainda não desfeito em pó e disposto a deixar-se atravessar pelas nossas espadas.

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