sábado, 18 de junho de 2016

História gótica



84. No primeiro dia do Natal a minha mãe disse-me, quatro crianças loiras iguais.
No segundo dia do Natal a minha mãe disse-me, um homem cruel acompanhado de um cão e de um símio. No terceiro dia do Natal a minha mãe disse-me, uma mulher de vestido de prata mais cruel ainda. No quarto dia do Natal a minha mãe disse-me, uma velha que às vezes é um fantasma. No quinto dia do Natal a minha mãe disse-me, um corcunda adulador. No sexto dia do Natal a minha mãe disse-me, um mongol que foi um lobo e é agora um retrato. No sétimo dia do Natal a minha mãe disse-me, um gigante. No oitavo dia do Natal a minha mãe disse-me, uma noiva transparente de quem não se fala. No nono dia do Natal a minha mãe disse-me, um  maldito que ouve os pecados alheios. No décimo dia do Natal a minha mãe disse-me, quatro cariátides mudas. No décimo primeiro dia do Natal a minha mãe disse-me, quatro harpias hórridas. No décimo segundo dia do Natal a minha mãe disse-me, uma mulher transformada num monstro. No décimo terceiro dia do Natal a minha mãe disse-me, homenzinhos ávidos. No décimo quarto dia do Natal a minha mãe disse-me, a multidão que é o caído que é multidão. No décimo quinto dia do Natal a minha mãe disse-me, coisas que se arrastam e silvam. No décimo sexto dia do Natal a minha mãe disse-me, um jovem sem história e branco como uma folha de papel em branco. No décimo sétimo dia do Natal a minha mãe disse-me, um sepulcro um caixão um ataúde. No décimo oitavo dia do Natal a minha mãe disse-me, um mistério lá dentro. No décimo nono dia do Natal a minha mãe disse-me, uma noite funesta que se aproxima. No vigésimo dia do Natal a minha mãe disse-me, breu. No vigésimo primeiro dia do Natal a minha mãe disse-me, labirintos. No vigésimo segundo dia do Natal a minha mãe disse-me, lamentos. No vigésimo terceiro dia do Natal a minha mãe disse-me, gritos. No vigésimo quarto dia do Natal a minha mãe disse-me, uivos. No vigésimo quinto dia do Natal a minha mãe disse-me, basta. Conta-se ainda que uma aldeia que brotou em volta de uma mina e no sopé de uma encosta, ensombrada por um castelo negro ou assombrada, com estradas de terra e poucos visitantes ainda assim alguns, por onde quase ninguém passa, que quase ninguém conhece, de que nunca se ouviu falar, que fica longe de qualquer cidade, que não fica a caminho de nada, perto de coisa nenhuma, riscada dos mapas, ausente dos registos, de onde ninguém escreve a ninguém, de onde não se enviam postais, onde se instalou um farmacêutico fútil e de onde foge um pároco leviano, onde circula um homenzinho redondo que gosta de quadrados que arrasta uma mala que esconde alguma coisa e o que esconde não esconde na mala, onde se encontra uma taberna bafienta e um taberneiro, uma esposa vápida que julga albergar princesas, agricultores que cultivam espigas e que criam vacas, incomodada por nómadas, onde mulheres jovens de faces e mãos vermelhas lavando no rio a roupa riem em dias de sol, onde são poucos os dias de sol, onde o que há mais é dias cinzentos, onde chove e troveja quase sempre, de homens sujos de carvão, de noites mal dormidas, de angústias, de susto calado e frio na espinha, de onde são enviados para as cidades os filhos que se espera sem se dizer que não voltem, conta-se ainda que uma aldeia assim nunca existiu porque nunca devia ter existido.

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