quinta-feira, 21 de abril de 2016

História Gótica

39. À entrada do palacete iluminado por onde passavam homens de fraque negro e laços de seda branca, e mulheres de vestidos tão adornados de rendas quanto os pescoços estavam adornados de diamantes, o Príncipe Egon Gustav von Tepes entregou ao mordomo obsequioso as luvas, e aceitou a taça de champanhe que lhe foi oferecida.
Era uma presença assídua nas festas organizadas pelas famílias da nova aristocracia, mas descendia de uma das mais antigas, e das mais proeminentes, famílias da W. Como alguma parte destas famílias pretéritas, enriquecia as soirées, os bailes e as sessões de poesia daquelas mais recentes com a sua linhagem insuspeita e as suas maneiras impecáveis. A nova aristocracia, instituída há décadas e não há séculos, não tivera ainda tempo de disfarçar por completo as suas origens plebeias e criminosas, pois o pecado original dos poderosos, dos que o são há décadas bem como dos que o são há séculos, é o roubo, a pedra inicial que as brumas do tempo vão tornando mítica e gloriosa. E, no sobressalto que a possibilidade da exposição pública dessas baixezas lhes provocava, os novos donos do mundo esperavam legitimar-se convidando para as suas casas os antigos. Nem todos aceitavam, claro, esta convivência com aqueles a quem a sorte, essa protectora frívola, elevara a uma posição de grandeza. Fosse porque reconhecessem nos rostos das filhas dos burgueses os traços grosseiros da gente pobre de onde os pais tinham saído a duras penas e vontade de ferro, esses traços que levaria gerações a fazer desaparecer através de um cuidadoso processo de apuramento da raça; fosse porque se ressentiam da perda do seu esplendor; fosse porque lhes ofendesse o gosto delicado a ostentação boçal dos novos-ricos, algumas das famílias nobres preferiram retirar-se para as suas propriedades rurais e abandonar a corte que já não existia. Outros ainda deixaram-se afundar na sua nova pobreza, e essa ruína foi vivida como se ainda de nobreza se tratasse, o último gesto do vencido que afirma até ao fim a sua dignidade e a daqueles de quem descende. O Príncipe von Tepes pertencia ao grupo dos que, tendo perdido tudo, não querem perder o luxo a que estavam habituados. E que entendiam que o preço dessa mistura com a vulgaridade não era, apesar de tudo, demasiado alto. Justificavam-se até apelando à condescendência com que o homem superior deve tratar os que estão abaixo dele e que precisam de um guia que os conduza à miragem longínqua do requinte, Virgílios modernos conduzindo os transviados ao paraíso. Em suma, era um homem encantador que achava muito natural que lhe pagassem. As lagostas e o champanhe, os charutos e as bebidas finas, consumia-os como se fosse seu direito, um direito que não necessita de ser imposto através de violência e revoluções. As carruagens e os cavalos que o transportavam, enviados pelos seus recentes amigos, as camisas e as gravatas que se esquecia de lhes pagar, tal como se esquecia de liquidar contas em lojas de pequenos comerciantes ainda tímidos por causa da deferência que é devida a um personagem importante, eram privilégios de que naturalmente usufruía. Mas havia, para além da caução que dava aos arrivistas, uma outra fonte do poder deste Príncipe que ele usava não apenas pelo motivo egoísta do conforto, mas porque através dele persistia a tradição de conquista e sedução que desde sempre tinha sido praticada pelos seus antepassados. 

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