sexta-feira, 25 de março de 2016

Invasões bárbaras

As invasões bárbaras durante o século V destruíram o império romano e uma civilização com séculos de existência, seguindo-se uma idade das trevas. Nos últimos tempos, surgiu outra visão, que se tornou talvez dominante. Afinal, o que houve foi uma transição pacifica para o domínio germânico. Esta mudança de perspectiva tem a ver com a actual situação – as perguntas que colocamos sobre o passado nunca estão desligadas do presente em que vivemos. Imagino que na cabeça de muitos germânicos, escandinavos e anglosaxões seja difícil engolir que os latinos, esses povos cheios de vícios, foram outrora muitíssimo mais avançados que os povos “bárbaros” do norte da Europa. Há cerca de 10 anos o historiador Bryan Ward-Perkins, com certeza irritado com essa visão idílica dos acontecimentos, escreveu um livrinho intitulado “A queda de Roma e o fim da civilização”, em que tenta demonstrar que o fim da autoridade universal de Roma trouxe o caos. Nove décimos da Europa regrediram mil anos, para o princípio da Idade do ferro.
O império romano atingiu um extraordinário nível de sofisticação. A moeda tinha-se generalizado nas trocas quotidianas. O nível de especialização produtiva por região estava já bastante avançado. Um camponês do norte de Itália podia comer em loiça e dormir debaixo de um telhado de telhas produzidas no sul de Itália. A cerâmica romana era de excelente qualidade, produzida em grandes quantidades e com uma alargada difusão. Era transportada por muitas centenas de quilómetros, chegando não só aos ricos, mas também aos pobres. O mesmo se passava em relação à produção de metais. Tudo indica que os enormes mercados para o vestuário, o calçado e as ferramentas não fossem menos sofisticados. Os arqueólogos nas últimas décadas têm feito descobertas que só vêm confirmar esta tese. Nos séculos seguintes, reinou o caos, a insegurança, a violência, a miséria. As pessoas voltaram a comer à mão, os pavimentos das casas passaram a ser de terra e os telhados de palha e barro. A moeda quase desapareceu e no dia-a-dia voltou-se à troca directa. Basta entrar num museu para verificar que há sempre um buraco de 700, 800, 1000 anos, em que a civilização desapareceu do radar histórico. Ao contrário da cerâmica e do metal, a palha e o barro não resistem à ruína natural do tempo.
Moral da história? O impensável acontece.

4 comentários:

  1. Bem, falando como míope, o que é certo é que essa suposta civilização romana sofisticada não conseguiu inventar os óculos, mas a Idade Média sim (no século XIII, já depois da fase das trevas, é verdade, mas não tão muito depois, sobretudo se compararmos com os séculos que a civilização romana durou).

    De qualquer maneira, eu tenho muitas dúvidas sobre a possibilidade de, arqueologicamente, determinar o grau de desenvolvimento de uma sociedade - sociedades com muita desigualdade social e/ou com muita centralização do poder político tendem a deixar mais vestígios, mesmo que o nível de vida geral não seja muito melhor (sobretudo sociedades politicamente centralizadas tendem a produzir mais cidades, o que pode dar a ilusão de progresso).

    Quando andava no 8º ano, a minha professora de Geografia, pôs uma questão de porque é antigamente a Europa do Sul era a Europa desenvolvida e agora é a do Norte; na altura não me ocorreu nenhuma explicação (mas achei - e continuo achar - um pouco delirante a que a professora depois deu: que, porque a agricultura se praticava há muito mais tempo na Europa do Sul, o solo agora estava cansado); mas, uns anos depois, voltei a pensar no assunto e ocorreu-me que talvez a Europa do Norte tenha sido sempre mais desenvolvida, sendo o "desenvolvimento" da Europa do Sul da antiguidade simplesmente uma ilusão criada pela existência de Estados relativamente centralizados (mesmo a Grécia das cidade-estados era provavelmente mais centralizada que os clãs germânicos ou celtas).

    [Mesmo hoje em dia, as imagens de destruíção em Mogadíscio que de vez em quando passam na televisão levam a que a opinião dominante no Ocidente seja a que a Somália é uma devastação total, quando há alguns estudos que apontam para que seja das economias africanas com maior crescimento]

    Seja como fôr, mesmo que a queda de Roma tenha provocado uma regressão, penso que alguns séculos depois o ex-Império Romano do Ocidente já era mais desenvolvido do que o que sobrou do Império Romano do Oriente, logo essa regressão se calhar não durou muito tempo (ou seja, a uma escala histórica alargada o impensável talvez não aconteça).

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    1. "logo essa regressão se calhar não durou muito tempo (ou seja, a uma escala histórica alargada o impensável talvez não aconteça)."
      1000 anos é muito tempo, Miguel, em qualquer escala. Falaste nos óculos que apareceram na Idade Média, mas, já agora, também podemos acrescentar o relógio, fundamental para a industrialização que viria séculos mais tarde. Mas essa invenções apareceram 800 ou 900 anos depois da queda do império do romano.

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  2. As consequências da queda do Império Romano do Ocidente são mais um exemplo de que a História não é necessariamente um contínuo progresso. Nem tudo o que é novo, novidade, é necessariamente melhor do que aquilo que o precedeu..

    Citando J.B. Bury:

    "To the minds of most people the desirable outcome of human development would be a condition of society in which all the inhabitants of the planet would enjoy a perfectly happy existence. [...] it cannot be proved that the unknown destination towards which man is advancing is desirable. The movement may be Progress, or it may be in an undesirable direction and therefore not Progress. [...] the Progress of humanity belongs to the same order of ideas as Providence or personal immortality. It is true or it is false, and like them it cannot be proved either true or false. Belief in it is an act of faith."

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    1. Exacto, nem tudo o que é novo é melhor do que o procedeu, e isso também faz parte da moral da história.

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