segunda-feira, 18 de maio de 2015

Cobiça

"We begin by coveting what we see every day."
Hannibal Lecter, The Silence of the Lambs

No Sábado à tarde, abri o meu livro de receitas "O Bolo das Quartas-Feiras", editado pelas Fábricas Lusitana, que produz a farinha Branca de Neve, para fazer um bolo. Como só tinha três ovos, seleccionei o bolo económico de chocolate. Depois de feito, desenformei-o num prato português pintado à mão, e decorei-o com morangos, framboesas, e mirtilos. Ficou assim:

Cobri-o e levei-o comigo para ir visitar a minha vizinha, a tal que vive na minha casa preferida de Houston. A casa dela fica do outro lado da rua, no lado esquerdo do cul-de-sac. Como o lote onde a casa está fica num canto, é desejável no mercado imobiliário americano porque "corner lots" costumam ser maiores; a localização no cul-de-sac também é muito cobiçada porque é onde há menos trânsito. Toquei à campainha duas vezes, mas ninguém apareceu. Decidi bater e alguns momentos depois, a minha vizinha aparece à porta e quando me vê fica um misto de surpreendida e feliz. Convida-me prontamente para entrar. Entro na casa e observo que está como se entrássemos em 1960. A minha vizinha leva-me para o quarto de sol, o "sunroom". Eu sempre quis viver numa casa com um "sunroom", mas o mais próximo que tive foi a minha casa em Memphis que, no canto de pequeno-almoço--"breakfast nook"--tem uma janela que ocupa a parede toda. Eu passei longas horas ali sentada a ver o que se passava lá fora: esquilos a comerem as minhas flores, o sol a levantar-se, neve a cair, fortes chuvadas... Tudo isso fascina-me e dá-me imenso prazer de observar.

Na mesa do quarto de sol, estavam dois copos de vinho, um jogo, e uma outra senhora de idade avançada sentada à mesa. Os copos de vinho fizeram-me sorrir porque, no outro dia, uma amiga da minha irmã disse-me que eu era alcoólica. Eu perguntei à minha irmã porque é que a amiga dela achava que eu era alcoólica e ela disse-me que eu postava, no Facebook, fotografias das minhas refeições nas quais eram visíveis copos de vinho. Concluo que, em Portugal, beber um copo de vinho quando eu vou jantar fora, ou à refeição em casa, é indicativo de alcoolismo para certas pessoas. Ao ver as minhas vizinhas percebi que eu estava muito americanizada; em Portugal, eu já sou estranha. Sim, vocês têm razão: eu sempre fui...

A minha vizinha pediu-me para eu a recordar do meu nome, apresentou-me à outra senhora, ofereceu-me um copo de vinho, e pediu para eu me sentar. Ofereci-lhe o bolo e ela ficou encantada e disse, a brincar, "Oh não, será que faço anos outra vez? Mas isso quer dizer que terei 91 anos e eu não quer ter 91!" Ambas as senhoras apreciaram a beleza do prato e disseram que parecia italiano. Disse-lhes que o prato era português e elas aquiesceram e disseram que fazia sentido pois os países da Europa do sul têm cerâmica com influências comuns. Quando ela me perguntou de onde eu vinha, eu disse que me tinha mudado de Memphis, mas que eu era de Portugal. Ela disse-me que tinha visitado Portugal com o marido, quando ele ainda estava vivo. Gostou muito da viagem e disse-me que tinham ido jogar golfe em Portugal num sítio onde se tinha de ir com um ferry, mas ela não se recordava do nome. O único sítio que me ocorreu para sugerir foi Tróia, mas não sei se acertei. Ela disse que sim, que talvez fosse isso. Dessa experiência ela achou divertido que quando alugou os tacos de golfe, não reparou que eles eram para pessoas canhotas e teve de os ir trocar.

Depois falou-me da nossa vizinhança e de como ela e a amiga se referem às casas pelo nome das pessoas que lá viviam há muitos anos. Disse-me que tinha 90 anos, a outra vizinha tinha 92. Eu disse que tinha 43 e ela disse "Meu Deus, não me recordo de alguma vez ter tido 43 anos." e riu-se. A minha vizinha é uma senhora extremamente jovial e bem-disposta. Perguntou-me se eu queria ver a casa e eu disse que sim. É uma casa grande, muito maior do que aparenta do exterior, com quatro quartos, dois quartos de banho, e 234,5 metros quadrados. Foi construída em 1960. O lote, que tem 2.185 metros quadrados, foi comprado por $7.000 a um vizinho e ela e o marido pediram a um arquitecto amigo para desenhar a casa. O quarto de sol não fazia parte do projecto original e foi construído alguns anos mais tarde pelo mesmo arquitecto. Nota-se que a casa é única e talvez seja isso o que me cativa nela, para além do estilo.

Visitei a casa. A mobília é, na sua maior parte, "mid-century modern", um estilo com forte influências escandinavas. Os vernizes das peças fazem ressaltar a beleza natural da madeira, que por vezes é nogueira. O estilo da casa também é assim: as paredes têm muitos painéis em madeira, mas é tudo muito sóbrio. As portas e os armários são todos originais à casa, até os puxadores. Na parte das traseiras, a sala tem janelas enormes, com vista para o jardim, que recebem muita luz de fora. Também há várias clarabóias. O jardim é grande e muito agradável com árvores altas de sombra. Enquanto me mostrava a casa, a minha vizinha disse duas coisas que eu fixei. Ao ver uma fotografia do marido, disse "Este é o meu marido, ele era um tipo muito bom (really nice guy)". A outra coisa foi um lamento: ela disse que ninguém que comprasse aquela propriedade apreciaria aquela casa. Como o lote era tão grande, o mais provável seria que a casa fosse destruída e uma casa enorme, estilo vila italiana, tomasse o seu lugar. Partilhei do seu lamento, pois enche-me de tristeza que aquela casa deixe de existir. Parece ser um sítio que gosta de fazer as pessoas felizes. Eu fico feliz sempre que a vejo.

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