quarta-feira, 18 de março de 2015

Interpretações de privacidade

Em Portugal, as notas dos alunos são públicas. No final do trimestre ou no final dos exames, depois de estes serem corrigidos, lá aparecem as notas na parede com o nosso nome para todos verem. Às vezes, é humilhante. Lembro-me da minha primeira nota da faculdade, que foi na frequência de Matemática I e que foi 10,7. Quando vi aquilo os meu olhos ficaram rasos de lágrimas e senti vergonha de ter uma nota tão má. Os meus amigos diziam que ao menos dava para ir à segunda frequência, logo não havia crise. E não houve crise, até porque essa nota acabou por ser completamente irrelevante porque eu chumbei a segunda frequência porque comi um pastel de carne estragado no bar da faculdade e fiquei com envenenamento alimentar.

A prática de notas públicas em Portugal contrasta com a prática nos EUA. É proibido revelar as notas dos alunos a outras pessoas e um professor ou uma escola que o faça fica em grandes sarilhos porque se violou a privacidade do aluno. Por exemplo, quando entregamos testes a alunos, normalmente, coloca-se a nota numa página interior para que ninguém a veja ao se entregar. Compreende-se que o sistema português quer controlar o favoritivismo, mas mesmo assim ele existe e nós sabemos que ele existe. A existência de procedimentos que supostamente o eliminam pode ser reconfortante para a alma, mas é apenas isso.

Agora com a chamada lista VIP das Finanças, Portugal discute a privacidade dos cidadãos VIP cuja informação acerca dos seus rendimentos deve estar fechada a sete chaves e só disponível a certas pessoas. Mas isso, para nós, é apenas a ponta do iceberg. Diz o Vítor Lourenço, chefe da Autoridade Tributária, que entretanto se demitiu:

“Eu estou mais preocupado com os contribuintes em geral do que com os VIP, porque imagino que se se passa com os contribuintes VIP, o que não se passará com os contribuintes comuns, porque um funcionário tem a possibilidade, ou a facilidade, de entrar na privacidade de qualquer contribuinte sem qualquer fundamento”, afirmou Vítor Lourenço.
Eu concordo com Vítor Lourenço, realmente a privacidade dos VIP, na minha opinião, não tem maior importância do que a privacidade dos não-VIP; muito pelo contrário. Os VIP da política, especialmente os que são pagos com o dinheiro dos contribuintes, deviam facilitar essa informação voluntariamente para promover a claridade na política e para combater a corrupção. Por exemplo, se forem à página de Internet da Casa Branca, encontram o formulário de impostos que o Presidente Obama entregou todos os anos. Como funcionário público VIP ele não tem direito a privacidade nos EUA.

Mas, voltando a Portugal, e nós cidadãos comuns? Parece que os funcionários da Autoridade Tributária abusam dos seus poderes. Será que isso revela falta de treino, falta de bom senso, ou quê? E em que é que a demissão de Vítor Lourenço nos ajuda a construir um sistema melhor do que este que agora diverte os jornalistas? Para mim, um sistema perfeito não é um que guarda a sete chaves a informação de pessoas VIP que podem abusar do sistema, como o que Vítor Lourenço parecia defender. Mas o chefe da Autoridade Tributária não é o responsável pelas leis de privacidade que se criam em Portugal.

3 comentários:

  1. Linda, a declaração do Obama!!! Às vezes adoro a América e a ética protestante! Não se arranja o mesmo do nosso PR? E dos deputados e senadores americanos? E dos nossos membros do governos? E dos nossos deputados?

    Rita

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  2. Em Portugal, imagino que por razões culturais, a privacidade e o dever de sigilo são muito pouco valorizados. Os funcionários das finanças, dos hospitais, dos bancos, da justiça, e de tantas outras áreas em que se entra em contacto com dados sensíveis que ignoram sistematicamente o seu dever de sigilo e de reserva. Do meu ponto de vista isto também é culpa das administrações e dos seus dirigentes que deveriam ter regulamentos sobre os deveres de sigilo e de reserva, deveriam ser ministradas formações periódicas a todos os funcionários de todos os níveis hierárquicos, e obviamente que deveriam existir sanções para quem não os cumprisse. Mas enfim é muito mais "eficiente" e "produtivo" não se preocuparem com estas minudências.

    Relativamente ao caso específico da lista VIP, e perante tal estado de coisas, obviamente que não concordo com a criação de desigualdade entre os contribuintes, e penso que a decisão do dirigente efetivamente não foi muito bem ponderada. Contudo, preocupa-me que quem efetivamente procura mudar o estado das coisas, mesmo que de forma demasiado "voluntarista", seja forçado a demitir-se e seja tratado como um proscrito pela comunicação social. Ou seja, continua-se a promover a atitude dos dirigentes público de que o melhor é estar "quietinho" e fazer o menos possível de forma a não entrarem em conflito, nem a tomarem nenhuma decisão errada. Penso que a promoçao desta atitude demasiado passiva nos dirigentes acaba por ser muito prejudicial a longo prazo.

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