sábado, 30 de agosto de 2014

Carta a Ana Laura

Ilha do Pico, 17 de Julho de 2014

Minha Querida Neta Ana Laura,

Hoje é o dia do teu sexto aniversário, meu amor. Vou fechar os olhos para te ver e ouvir melhor. Parece um paradoxo. Não é. Ao fecharem-se os olhos do corpo, abrem-se os da alma ou do íntimo e, nesse momento, vejo-te inteira, num brincado brilho que de ti nasce, e ouço: “Avô, trouxeste-me um dinossauro?” “Claro que sim, minha neta…” Nesse instante, faíscam os teus olhos num cambiante de tintas – verde e azul, ambas acolhidas no seu fundo vivo e ateado. Rendem-se uma à outra, conforme a luz espolinhando-se sobre a paisagem aquecida por um sol maduro. Existe um livro célebre na Literatura Portuguesa, Viagens na Minha Terra, um dia hás-de lê-lo, em que a personagem principal se chama Joaninha dos Olhos Verdes. Se Almeida Garrett, o autor do romance, te conhecesse e quisesse substituir-te pela sua personagem, teria muita dificuldade em lhe achar um cognome. Baptizá-la-ia, quem poderá adivinhar, de Laurinha dos Olhos Furta-cores, isto é, que tomam a cor de acordo com a luz.

Vestida nos teus seis anos irás em Setembro frequentar o primeiro ano da escola primária, não sei se é assim que se diz, acho que é básica, tanto faz; no tempo em que o Avô para lá foi, há anos tão esquecidos, que nem ele consegue contá-los pelos dedos cansados, dizia-se primeira classe da instrução primária. Agora a nomenclatura mudou, mas, no fundo, todos ou quase todos os rios vão dar ao mesmo mar. Soube de fonte cristalina que estás muito contente. Fico feliz por, hoje, ser a escola um lugar onde a alegria anda de mão dada a brincar com as crianças. No tempo do Avô não acontecia assim. Pelo contrário. Dir-se-ia, sem exagero, que ela jorrava tristeza, medo, amargura. Tempo triste em que ser criança era quase proibido. Tudo, afinal, era interdito. De tal modo me cunhou a primeira escola, e as outras que se lhe seguiram, que ainda hoje me sobejam cicatrizes espalhadas pela mente e pelo corpo. Se as cicatrizes são o revestimento calejado de uma ferida, ela às vezes fura essa carapaça e põe-se, desatinada, a doer. E a dor é sempre mais forte e mais fina, porque passa pelo filtro de malha apertada da memória que ainda se sobressalta ao rememorar. Felizes os que não têm memória. Deles será o reino da tranquilidade e da estupidez…

Tu, minha querida neta, terás decerto outros problemas, há-os sem­pre, se não a vida seria uma monotonia pegada, mas os teus e os da tua geração, terão uma especificidade distinta daqueles que o Avô foi enfrentando pela vida fora. Melhores ou piores, é proibido adivinhar.

As dificuldades nunca serão pêra doce. Depois, e se comparadas com as anteriores, é que poderão ser avaliadas. Eu dei com os costados numa guerra, eu e milhares de jovens, uma geração perdida. A tua geração terá certamente outra guerra tão custosa ou mais do que aquela sofrida pela minha, não se sabe. Vivemos num mundo em crise, acho que sempre se viveu em crise, desde que o ser humano apareceu sobre a face da terra. O que se precisa é de meios para enfrentá-la e de ânimo para vencê-la e fazer peito à onda que se lhe segue.

Vais então iniciar uma aprendizagem que te vai apetrechar com a ferramenta necessária para construíres a vida. Constrói-a em alicerces seguros. Tens talento e força para carregares o fardo até ao fim. Não vais desanimar, tenho a certeza, a tua têmpera é de tal rijeza que chegarás aonde bem quiseres.

Um beijo do Avô que te quer muito,

Cristóvão

PS A carta é publicada com atraso de algumas semanas por motivos que não são alheios à iliteracia informática do filho do autor da carta.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Ainda o BES e os riscos para o contribuinte

Neste momento, já é cristalino para toda a gente que a operação BES/Novo Banco envolve riscos para o contribuinte de alguns milhares de milhões de euros.* Mas há um aspecto que ainda não vi referido.


Independentemente de não ser possível a ministra garantir que tal sucederá, a verdade é que mesmo que tudo decorra como o planeado tal não significa custo zero para os contribuintes. Se a venda do Novo Banco for feita com prejuízo e a banca for chamada a pagá-lo, cada banco pagará de acordo com a sua quota de mercado. A quota de mercado da Caixa Geral de Depósitos é de cerca de 32%. Se retirarmos o BES, a Caixa fica com uma quota de 40%.

Quer isto dizer que em caso de venda com prejuízo, o que está previsto é que a Caixa Geral de Depósitos fique com a responsabilidade de cobrir entre 32% e 40% desse prejuízo. Claro que se poderia argumentar que as despesas da Caixa não representam um custo para os contribuintes, mas dado que é formada por capitais exclusivamente públicos, de que só o Estado pode ser detentor, tal argumentação teria muito pouco cabimento.

*Isto não pretende ser uma crítica à solução encontrada, dado que não consigo conceber uma alternativa que seja menos má. É, isso sim, uma crítica à desinformação que rodeou todo este processo.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

O ex-precog em recuperação teve uma recaída*

João Miguel Tavares continua errado, mas ao menos já escreve com um pouco de mais bom senso. No artigo de hoje no Público, procura emendar a mão mas falhou. De qualquer forma, parece razoavelmente óbvio que já mudou o tom da sua prosa, o que se saúda.

Em artigo anterior gozava, chamando-lhe precog lusitano, quem questionava a actuação do Banco de Portugal ao longo do processo que desembocou na falência do BES, com potenciais custos para os contribuintes de vários milhares de milhões de euros. No artigo de hoje, já nos dá autorização para discutir o que falhou. Mas, claro, insiste na sua ideia de que não se podem comparar as “actuações de Vítor Constâncio e de Carlos Costa”. O raciocínio de João Miguel Tavares é mais ou menos este:
  1. pondo de parte as fugas de informação que permitiram a algumas empresas pôr ao fresco centenas de milhões de euros antes da machadada final;
  2. pondo de parte as fortes evidências do crime de inside trading;
  3. pondo de parte as declarações do Governador do Banco de Portugal que disse ter conhecimento de operações fraudulentas desde Setembro do ano passado;
  4. pondo de parte os 3500 milhões de euros emprestados pelo Banco de Portugal a um banco que dificilmente se poderia considerar solvente;
  5. pondo de parte que os contribuintes já garantiram um empréstimo adicional de 4000 milhões de euros contra a promessa de retorno futuro, aquando da venda do Novo Banco;
  6. enfim, pondo de parte tudo o que correu mal e tudo o que pode vir a correr mal;
então a actuação do Banco Central nesta crise foi infinitamente melhor do que na anterior crise. E isso porquê? Explica João Miguel Tavares: porque a solução encontrada pelas instituições portuguesas e europeias para o BES, por muitas falhas que tenha e muitos problemas que possa vir a levantar, é, na sua essência, uma revolução (...) em relação a tudo o que se passou até hoje sempre que esteve em causa a falência de um banco sistémico.

Dado que a solução agora encontrada decorre do guião da união bancária, aprovado há poucos meses, ela seria impossível ou ilegal no quadro jurídico anterior. Ou seja, se levarmos João Miguel Tavares a sério, a actuação de Constâncio é muito pior do que a actuação de Carlos Costa porque Constâncio não aplicou uma solução que só se tornou legalmente possível vários anos depois.

E acusa o João Miguel Tavares de os outros se armarem em precogs.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Precog lusitano o caraças!

Um tipo lê este artigo do João Miguel Tavares e tem dificuldades em acreditar. Dado que Portugal não tem moeda própria, a única função do Banco de Portugal é a regulação e supervisão do sistema bancário. O Banco de Portugal tem 1700 funcionários, quatro vezes mais que o Banco Central da Suécia, que, lembre-se, tem de gerir a sua moeda, a coroa sueca.

O Banco de Portugal é a instituição portuguesa que mais bem paga aos seus funcionários. Paga salários elevados, paga subsídios aos filhos dos funcionários, tem um regime de pensões altamente favorável e por aí fora. Em média, cada funcionário recebe cerca de 5000€ mensais. O anterior governador, Vítor Constâncio, tinha uma remuneração superior à do presidente da FED norte-americana (não sei se é o caso do actual governador, Carlos Costa).

E vem agora o João Miguel Tavares dizer que não podemos chamar o Banco de Portugal à pedra depois de falhas absurdas de supervisão nos dois maiores escândalos financeiros de que há memória em Portugal. 

Olha merda, se nem para os chamar à pedra servem, servem para quê, exactamente?