sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Carta à Ana Rita

Na freguesia onde eu nasci, numa ilha sozinha no meio do Atlântico, não era comum o nome de Rita. Nem o de Ana. Logo que principiei a dar fé do mundo, isto é, das coisas e das pessoas, dizia-me minha Avó que havia uma senhora, sua parente, já morrida, que tinha o nome de Ana, a Tia Anica ou Tia Aninhas, e uma Tia Maria Rita, que morava no fim da minha rua, muito longe ainda para os meus pés, já velhinha, que o Avô Cristóvão ainda conheceu na sua adolescên­cia. E acrescentava minha Avó Maria da Luz: Há nomes que só os velhos é que usam, e enumerava alguns, dentre os quais os de Ana e Rita, hoje em dia muito ouvidos, porque muito lindos, sobre­tudo quando as combinações são felizes: Ana Rita, Ana Laura e outros que agora me dispenso de nomear…

Os nomes, como um dia hás-de saber, variam com as épocas. No tempo em que eu medrava na minha freguesia da Ilha, os nomes mais populares, para as mulheres, eram, e de certa forma ainda conti­nuam sendo, Conceição (o nome de tua bisavó), Teresa, Fátima, Eduarda, Clotilde, Lurdes, Espírito Santo, Cecília, Fernanda, Au­gusta, Agostinha, e outros do mesmo género, a maior parte deles prece­didos ou seguidos do nome Maria: Maria da Conceição, Concei­ção de Maria, Maria Teresa, Teresa Maria, Maria Eduarda, Edu­arda Maria, Maria Cecília, Cecília Maria, e assim por diante… Tam­bém se usava só Maria como único nome, de origem bíblica, como tantos outros, quer femininos, quer masculinos: Sara, Mada­lena, Marta, Ester; Joaquim, José, Samuel, Isaque respectivamente… Na actualidade, Maria, como único prenome, está sendo cada vez mais empregado, não só nas zonas rurais como nas urbanas.

Quando, aos sete anos, entrei para a Escola Primária, no livro de lei­tura da primeira classe, primorosamente ilustrado para se tornar sedu­tor, mas cujo conteúdo era perigoso porque patrioteiro e deforma­dor do espírito – havia um trecho em le­tra grande, como em toda a primeira metade do livro, para que a aprendizagem das primei­ras letras se tonasse mais simples. Esse trecho, como eu dizia, era ilustrado com uma gravura de uma menina de mão dada com a mãe, vendo-se, em fundo, um extenso trigal ainda longe de estar ma­duro. Lia-se: “Rita, vem ver a seara, é da cor da tua saia verde…”

Deve ter sido a primeira vez que tomei conhecimento do nome Rita. Achei-o melodioso. Minha Avó Luz, afinal, não tinha razão! Não se tratava de um nome exclusivo de pessoa idosa, mas de uma menina perfeita que vestia uma sainha verde. Mal sabia eu que, sessenta e cinco anos depois, estaria a escrever uma carta de aniversário a uma neta minha também chamada Rita.

E na distância do tempo gostava, se fosse possível, de reescrever o tre­cho do meu longínquo livro da primeira classe. Se o pudesse fa­zer, escreve­ria: “Rita, vem ver o mar tão lindo, azul-cobalto, manso, que o Avô Cristóvão tem estendido em tapete, como uma herdade alen­tejana, à porta da casa da Ilha do Pico. Fico então esperando  por ti, minha querida Rita.

Ilha do Pico, 2 de Fevereiro de 2012

Avô Cristóvão

2 comentários:

  1. Sintra, 25 de Fevereiro de 2012

    Avô Cristóvão,

    Distraiu-se o carteiro no marco do correio e a carta que enviou à sua Ana Rita meteu-a ele na minha caixa do correio. Como vinha aberta, transgredi as regras da intimidade epistolar movido por esta curiosidade que nasce com os humanos, li-a, e comovi-me. Sabe como é: com a idade, a fragilidade atinge-nos o corpo e a alma, ficamos mais piegas, o outro terá alguma razão porque, como povo, temos uma provecta idade e não é improvável que a senilidade das sociedades não lhes traga também algum crescimento de pieguice.

    A carta que envia à sua Ana Rita (se bem me recordo, já tinha enviado por este meio também carta à Ana Laura) suscitou-me a tentação de alinhavar meia dúzia de curiosidades acerca dos nomes com que nos identificam na vida, e não sobrevivem na esmagadora maioria dos casos na memória seja de quem for ao cabo de algumas rodas da terra à volta do sol.

    E mesmo acerca daqueles que foram famosos o nome é uma coisa complicada. Esta é velha mas nem por isso menos intrigante: “Chegou-se à conclusão que o caminho marítimo para a Índia não foi obra de Vasco da Gama mas de um outro homem com o mesmo nome”. Na Coreia, há Kims por todo o lado; na China, o problema da identificação é complicadíssimo porque há milhões com o mesmo nome. Mesmo por cá, há tempos telefonaram-me de um banco a exigir um pagamento quando, na realidade, quem devia era outro indivíduo com o mesmo nome. Só no ficheiro desse banco há 4 clientes com um nome completo igual ao meu.

    Ainda acerca de nomes: A minha neta mais nova chama-se Rosa. A outra chama-se Rita. O neto é o Miguel. Nenhum nasceu em Portugal. Então como se chama a menina? Rosa???, as pessoas admiram-se. Rosa não está na moda. Rita está agora na moda mas durante muito tempo não esteve. Miguéis há mais do que no tempo do Dom Miguel. Rui, por exemplo, por outro lado, deixou de se usar

    E por quê? Pela simples razão de estratificação social.
    A senhora, classe A, tem uma menina, um encanto, e regista-a como Carlota. Começa a moda das Carlotas na classe A.

    A senhora, classe B, uns tempos depois, entende que se a senhora da classe A tem uma Carlota ela não é menos que a outra e a filha será Carlota. Começa a moda das Carlotas na classe B.

    Até que, banalizada o nome de Carlota, a classe A passa para as Margaridas, um nome antigo, e por aí fora.

    E assim se explica, segundo Steve D. Levitt, em Freakonomics, (Would a Roshanda by any other name smell as sweet?) por que é possível identificar com grande aproximação, a época, a classe, até a raça, de uma pessoa consoante o nome que lhe foi atribuído. E também as implicações que o nome pode ter em algumas circunstâncias da vida.

    Para finalizar o arrazoado: É óbvio que há nomes que são proscritos por uma sociedade pela simples razão de terem sido atribuídos a um indivíduo menos considerado, assim como há outros que são dados por razões de idolatria, de jogadores de futebol por exemplo.

    Quando à primeira situação, durante muito anos na aldeia onde nasci a nenhuma criança do sexo masculino foi dado o nome de Filipe; a nenhuma criança do sexo feminino foi dado o nome de Carolina. Nem o Filipe nem a Carolina tinham outro crime às costas se não o facto de serem pobres demais.

    Durante uns tempos fiz assentos de nascimento. Tinha 14 anos. Apareceram-me pela frente as situações mais curiosas que se possa imaginar. Tanto que hoje nem sei bem se não estarei aqui e ali a acrescentar um ponto a mais.

    Há tempo escrevi aqui acerca de uma criança (que hoje é homem maduro) que era para se chamar Menino Jesus e acabou por se chamar Nicolau. Não sei se vai acreditar. Mas se a sua curiosidade for tanta leia, se faz favor, aqui como as coisas se passaram:

    http://aliastu.blogspot.com/2011/12/menino-jesus.html

    E aceite um abraço do
    Avô Fonseca

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  2. Caro Avô Fonseca:

    Agradeço o seu comentário de que gostei bastante. Concordo inteiramente acerca do que escreve sobre a moda dos nomes. De facto, a vaga de muitos depende de factores sociais e da moda vigente. Em tempos não muito recuados, ergueu-se uma onda de nomes brasileiros bebidos nas telenovelas. Aquando da implantação da República Portuguesa, os pais mais abrasados e abraçados aos seus ideais republicanos chegaram a nomear as filhas como Maria República, Pátria Livre...e os filhos como Manuel Liberal, João Liberto, Liberato José... Após a Revolução Russa de 1917, ainda Portugal vivia em liberdade, houve um moço a quem o pai pôs o nome de Lenine de Jesus... Não é o chamadouro que me surpreende, mas, sim, o pacto lexical e quase semântico entre os dois substantivos próprios...

    Um abraço do
    Cristóvão de Aguiar

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